Passava das 15:00 de uma terça-feira cinzenta de Fevereiro de 1999. Estaria ele ingressando na terceira série dentro de algumas semanas, e não aguentava mais aquelas férias. Tinha que trabalhar durante todos os intermináveis dias, e seu pagamento era o material escolar para aquele ano (que no fim das contas chegou somente em maio).
- Por que raios todo mundo gosta dessas férias malditas? Claro, todo mundo se diverte nelas, exceto eu...sou um miserável mesmo.
Por sorte não estava trabalhando longe de casa - na verdade no mesmo bairro, muito próximo da casa de muitos coleguinhas de escola, que o veriam a trabalhar maltrapilho e triste ouvindo os resmungos do pai, enquanto seguiam a brincar e se divertir.
De repente, aparece uma colega de um lugar misterioso. Era Maria Luiza, irmã do Éverton, um dos poucos amigos que outrora tivera. O sorriso dela era radiante, e o olhar dela veio de encontro ao dele de uma forma tão mágica que os segundos se tornaram horas naquele instante. Naquele momento o mundo poderia ter simplesmente parado.
- Ora, essa...quem diria que a Maria Luiza iria aparecer uma hora dessas...mas por que está me olhando com essa cara? Será que está com dó de mim? Acho que não...E o que é isso que estou sentindo agora? Sou uma criança, ainda...essas coisas somente os adultos sentem... - pensava ele.
Depois daqueles eternos segundos, Maria Luiza tomou a iniciativa de caminhar em sua direção. Sem desfazer o sorriso, mas sem pronunciar uma palavra sequer, ela pegou na mão do rapazinho franzino, puxou-o e o levou correndo para outra rua mais afastada, que naquela época ainda não era asfaltada e onde muitas crianças brincavam naquele exato momento. Ele sentia-se envergonhado por estar todo sujo de argamassa e tijolos, com uma bermuda remendada e molhada, chinelos havaianas trocados, o corpo ainda infantil sem camisa. Ela estava incrivelmente exuberante, como jamais a vira antes, vestida com uma camisa branca com botões e uma calça azul marinho. Estava com medo que seu pai fosse brigar com ele. Certamente bateria nele por não estar trabalhando, e por estar brincando na rua então...era provável que naquele dia seria usada uma vara verde para o castigo. Incrivelmente, ele engoliu esse medo e se deixou levar por essa sensação de liberdade e amor que ele jamais havia sentido antes. Deixou aquela mão levá-lo para onde bem quisesse.
Lembra de terem brincado livremente de pega-pega e de esconde esconde, somente eles dois e mais ninguém. Nunca antes se vira semelhante sorriso como no rosto do guri e da Maria Luiza. As pessoas ao redor aplaudiam e riam da felicidade daqueles dois, e comentavam baixinho: "olha só, o Chico brincando...".
De repente o céu escuro começa a desabar, mas estava tão perfeito aquele momento em que os dois brincavam que isso não seria empecilho algum - queriam aproveitar o máximo de tempo que fosse possível. Maria Luiza estava ainda mais bela e mais sorridente mesmo estando molhada. Já não brincavam somente de pega-pega ou de esconde-esconde, estavam brincando também de dança na chuva, ciranda e tantas outras. Ficaram também por algum tempo no balanço que havia na frente da casa de Maria Luiza, enquanto as ruas ficavam desertas devido a chuva que foi forte o suficiente para acabar com a tarde de todas as crianças do bairro, mas que não conseguiu separar em especial aquelas duas crianças que balançavam e cantavam.
Em determinado momento de uma das brincadeiras malucas, acidentalmente um deles se choca de frente com o outro, e Maria Luiza cai na grama molhada em cima do menino todo molhado e sem camisa. Como por instinto, o rapazinho rola sobre ela de modo a ficar por cima, afaga-lhe o rosto, afasta os cabelos negros e encharcados com a chuva e fica a contemplando por outro longuíssimos segundos que mais pareceram uma maravilhosa eternidade. Por mais que nenhum dos dois fosse exatamente belo, havia uma indescritível luz radiante no rosto de cada um. Os sorrisos não saíram do rosto de nenhum deles desde que se encontraram. Então, o guri esperou que Maria Luiza fechasse os olhos musgos dela, para então fechar os seus lentamente e aproximar seu lábios dos dela. Ambos tiveram ali mesmo, na grama molhada, na chuva, o seu primeiro e inesquecível beijo. Um momento que durou pouco, mas o suficiente para se tornar também uma eternidade. Aquelas pequenas pessoas de idade tão tenra desfrutando de uma experiência de modo tão natural, tão belo, tão livre e sem culpa...o que viria depois já não importava a nenhum deles. É como se o mundo não existisse, apenas aquela chuva e aquela grama molhada. O mais incrível de tudo é que não pronunciaram uma única palavra sequer desde aquele momento em que Maria Luiza aparecera.
São 4 da madrugada. Francisco acorda-se e de repente se vê abraçando o travesseiro, negando-se a dormir de novo, mas ao mesmo tempo negando-se a acordar daquele sonho. É, foi somente um sonho, embora tenha acontecido realmente em Fevereiro de 99. Tudo tão real. Algo que ele jamais imaginaria que passaria por ele. Aquele rapaz não dormiria nas noites seguintes de tão impressionado que ficou com o sonho. Já era um pré-adolescente? Talvez...Embora a dura realidade não tivesse mudado, ele nunca mais foi o mesmo, sempre lembrou daquele sonho e ás vezes revivia o momento que nunca existiu. Percebeu que deixou passar essa fase de sua vida sem uma experiência intensa e duradoura como essa. Aquele lugar naquela rua nunca mais foi o mesmo. Porém, Maria Luiza nunca mais foi vista. Mudou de bairro com seu irmão, uma rotina que acontecia com frequência com seus amigos, já que o bairro era muito afastado e poucos eram os que se dispunham a ficar ali por bastante tempo. Talvez nunca fosse viver de verdade um momento como aquele, mas sabia que era possível. Desde então, o rapazinho tímido sempre esperou ansiosamente o mês de Fevereiro, para quiçá o grande sonho finalmente se concretizasse em realidade....
*Fato real
*Fato real
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